A arte como ciência da
liberdade
Rubens Pileggi Sá
O origem do mito
A primeira barreira a vencer quando vamos pensar um mito está em não nos
deixarmos aprisionar pela alegoria que a força de sua verdade invoca, temendo
ser por ela devorado. Atravessar a camada superficial de sua representação e
envolver-se em sua razão de ser e sua história é o grande desafio para a
compreensão do significado de sua existência. No caso do alemão Joseph Beuys –
um dos artistas mais importantes do século 20 -, esse algo, sem dúvida, é a
relação entre a estética e a política, na tentativa de unir, em uma só
dimensão, a arte e a vida, o sublime e o cotidiano. Para ele, “todo homem é um
artista” e a arte, a transformação não apenas do indivíduo, mas de toda a
sociedade. Lutando contra o racionalismo econômico e industrial e buscando
resgatar associações mágicas e arquetípicas que permitiriam o surgimento de um
homem íntegro e harmônico, Beuys nos deixou um legado que resiste até hoje, na
medida em que a dissociação do homem com seus valores essenciais se torna cada
vez mais evidente: "Me dei conta de que o artista pode desempenhar um
papel importante na cura de um trauma social", era o conteúdo de sua
pregação.
Nascido
em 12 de maio de 1921 e falecido em 23 de janeiro de 1986, Beuys, estaria
completando 80 anos, este ano. Filho de um comerciante de ração para animais,
desde criança se interessou por botânica, zoologia e biologia, tendo intenções
de estudar medicina. Em 1943, é convocado pelo exército nazista alemão para
participar da 2ª Guerra como piloto de aviões, quase perdendo a vida ao cair no
deserto da Criméia. Graças à uma tribo de nômades Tártaros que o manteve por
meses enrolado em gordura animal e feltro - para lhe curar de seus graves
ferimentos - pôde retornar ao mundo dos vivos, agora com a idéia de se
transformar em um artista. A gordura e o feltro, aliás, vão se transformar em
materiais fundamentais em sua poética, como metáforas de condução e isolamento
de energias, maleabilidade e proteção da vida. Os traumas de guerra também o
acompanharão.
Beuys
entrou para a Academia de Dusseldorf de Arte em 1947, trabalhando primeiramente
com o escultor Joseph Enseling e, logo, com Ewald Mataré, professor de
escultura e incentivador de seu trabalho. Durante este tempo, Beuys questionou
os parâmetros acadêmicos tradicionais e buscou ampliar seu alcance artístico,
habilidades técnicas e a compreensão de arte pelos assuntos que explorava, pelo
aprendizado das técnicas esculturais e pelo uso de materiais não tradicionais.
Seu desejo era o de explorar uma teoria sistemática da arte que pudesse
acomodar seus interesses em ciência e filosofia, de modo interdisciplinar e
holístico. Ao completar seus estudos na Academia de Arte, em 1951, Beuys
produziu milhares de trabalhos em papel com óleo, aquarela, nanquim e lápis. O
aparecimento regular de traduções arquetípicas da figura feminina, da forma
animal e das formas das plantas –particularmente o veado, alce, lebre, cisne e
abelhas – distingue o trabalho deste período.
Em meados dos anos 50 é acometido por uma crise depressiva, que chegou a durar anos. Graças aos irmãos van der Grinten, que o acolheram em sua fazenda e foram os primeiros a colecionarem seus trabalhos, Beuys teve seu ânimo reabilitado, podendo dar continuidade à sua produção: "Esta era a fase à qual eu comecei a trabalhar sistematicamente em certos princípios básicos". Estes princípios se desenvolveram no Conceito Ampliado de Arte e, depois, na Teoria de Escultura Social, uma prática de manifestação coletiva que via a sociedade como que sofrendo um trauma psíquico, social, político e ecológico. A arte, no entanto, poderia oferecer a cura plena e a redenção destes traumas.
A metáfora dos materiais
A
questão dos mitos e arquétipos e a condução da matéria de um estado caótico
para um estado determinado são aspectos fundamentais da obra de Beuys, não
importando se são peças achadas ou feitas, objetos esculturais autônomos ou
relíquias de um tempo passado. Suas esculturas existem no campo dos
significados simbólicos, criando conexões e associações das quais as metáforas vão
surgindo e se irradiam, para realizarem uma passagem que vai de uma experiência
pessoal para outra, mais fundamental e universal. “Da mesma maneira que o
idioma e a semântica dão forma a pensamentos e determinam como nós entendemos
um ao outro, assim faz o princípio de seu manifesto criativo em prática
artística e age como um modelo para aspectos inerentes dos processos sociais”,
explica o curador Emily Rekow.
Para
entender seu trabalho, é preciso se concentrar na capacidade evocativa dos
materiais empregados e na relação estabelecida entre eles. Suas obras exigem a
participação ativa e criadora do observador, que deve buscar os significados
propostos pelo artista, não bastando somente a contemplação passiva diante da
obra. Para Beuys, que usava sangue, mel, papel, gesso, bronze, metais, vidros,
tecidos e toda sorte de objetos, as metáforas e a realidade se constituíam da
mesma essência onde matéria e energia tornavam-se indistintas. Em uma de suas
obras, Capri-Batterie, de 1985, o artista simplesmente uniu uma lâmpada amarela
a um limão, por meio de um soquete, fazendo com que a acidez da fruta acendesse
a luz da lâmpada, recomendando que a “bateria” fosse trocada a cada mil horas.
A simbologia da cor amarela e a relação de um elemento industrial com outro,
natural, tornam evidentes suas preocupações em unir, ou, re-ligar o homem à
natureza.
Joseph Beuys. Capri batterie, 1985. Lâmpada com tomada, caixa de madeira serigrafada, litografia offset sobre papel, limão.
As ações
Joseph
Beuys foi apresentado à arte da performance em 1962, juntando-se ao
internacional, anticonformista, interdisciplinar e irreverente grupo Fluxus.
Dele, faziam parte artistas como o compositor norte americano John Cage, o
videoartista coreano Nam June Paik, a artista experimentalista Yoko Ono, o artista
bricoleur Daniel Spoerri e o inventor do Fluxus, o lituano George
Maciunas, entre outros. O contato com o Fluxus levou Beuys a relacionar arte e
vida, despertando seu talento para a atuação pública e o uso da mídia como
elemento capaz de propagar suas ideias. Para ele, que acreditava ser possível
preparar os indivíduos para uma evolução espiritual, suas ações – misto de
instalação com performances artísticas – poderiam se tornar um veículo para a
cura do ego e a transformação da sociedade. Agindo como um xamã moderno,
buscava unir a alma intuitiva e apaixonada à mente especulativa e intelectual.
“O processo inteiro de viver é o meu ato criativo”, ele dizia.
De
1962 a 1986, ano de sua morte, Beuys realizou mais de 70 ações. Durante este
tempo, ele criou mais de 50 instalações, participou de mais de 130 exposições,
concedeu inúmeras entrevistas, seminários, conferências e discussões. Como um
midas da arte, tudo em que tocava se transformava em objeto artístico. Metido
sempre em seu chapéu de feltro, que lhe escondia as cicatrizes do acidente na
Criméia, até os quadros-negros que usava para explicar seus conceitos
tornaram-se objetos de disputa de museus e galerias. Dizia que “o capital
criativo é o maior valor de todo empreendimento humano”.
Joseph Beuys. Forças de Direção para uma Nova Sociedade, 1977. Galeria Nacional de Berlim, Foto: reprodução.
Professor
da Universidade de Dusseldorf, em 1971 admite 142 alunos para participarem de
suas aulas, fato que acabou com sua demissão pelo ministro da Ciência e
pesquisa da Alemanha. E que só seria revertido em 1975, por decisão da Corte
Federal do Trabalho, sob pressão de artistas, intelectuais e estudantes. Desta
época, surgiu a ação na praça Karl Marx, em frente à Universidade, onde os
alunos em apoio ao professor Beuys fizeram uma manifestação pública. Em meio
aos estudantes, o professor passeava com uma vassoura vermelha que usou para
varrer o chão do lugar, recolhendo as sujeiras deixada pelos alunos e levando o
lixo para uma exposição em uma galeria de arte. “Ser professor é o meu grande trabalho
de arte”.
Fragmentos e totalidade
Redimensionando
o experimentalismo e ultrapassando a arte Conceitual – já que seu fazer não
visava só evidenciar os conceitos, mas fustigá-los – Beuys foi um artista que
se moveu pelos fragmentos do Romantismo e do Expressionismo Alemão, tentando
responder através da arte as questões da Cultura. Provocativa, sua atitude
perante o mundo desconsiderava os riscos pessoais e o medo de parecer ridículo
por unir aspectos aparentemente tão desconexos de sentido, como a relação entre
arte e vida.
Enrolado
em um cobertor de feltro, viajou da Alemanha para os Estados Unidos para
realizar a ação I Like America and America Likes Me, de 1974. Durante três
dias, se fez enjaular em uma cela, dentro de uma galeria de Nova York, com um
coiote selvagem – símbolo considerado sagrado por algumas tribos nativas e já
em perigo de extinção naquela época – um cajado e exemplares do Wall Street
Journal, sobre os quais o coiote urinava. Relacionando-se com o animal, o
artista acreditava que poderia aprender daquilo que considerava ser sua forma
superior de inteligência, que era a intuição. Além disto, a relação do
primitivo com o moderno é explicitada nas presenças do coiote e dos jornais.
Joseph Beuys. I like américa and America likes me, 1977. Durante 3 dias o artista trancou-se com um coiote, em uma galeria, nos EUA.
Inspirador
e defensor do Partido Verde, Beuys foi o precursor dos famosos abraços em torno
de parques e monumentos, denominados por ele de “Escultura Social”. Sua
militância ambiental se tornou conhecida depois que ele iniciou o projeto “7000
Carvalhos”, em 1982, para a exposição da 7ª Documenta de Kassel. Seu plano, envolvendo
a comunidade, foi completado por seu filho, após sua morte, com o plantio de
árvores pelos arredores da cidade, ao lado de uma pedra de basalto, que
serviria para indicar a ação e também para comparar o crescimento da árvore,
material orgânico, à consistência da pedra, material inorgânico. Para as
funções estéticas e sociais do trabalho não é necessário para o observador
saber se é uma obra de arte ou não. O caráter de arte fica dissolvido em uma
efetividade social direta que beneficia os habitantes e cidadãos. “Terá um
resultado visual muito forte em 300 anos”, disse o artista, em entrevista.
Joseph Beuys. Ação para a realização do trabalho “7000 carvalhos”, iniciado em 1982. Foto: reprodução.
Caos
e ordem, natureza e homem, energia e matéria, permanência e movimento. Para
Beuys, tais polaridades fazem parte integral de seu sistema criativo, sempre
trazendo como tema as grandes questões do primordial, do arcaico, da
fertilidade, da ancestralidade, da escatologia e do apocalipse. Em “Bomba de
Mel no Local de Trabalho”, por exemplo, realizado entre 1974 e 1976, que foi apresentada
na Documenta 6, em Kassel, na Alemanha, o artista utiliza tubos para a passagem
do líquido espesso produzido pelas abelhas, bombeando 150 quilos de mel que circulam
com a ajuda de uma bomba motorizada. Símbolo do produto do trabalho coletivo, o
artista via nesta substância nutritiva preciosa o modelo ideal para o fluxo de
uma energia de pensamento positiva capaz de ativar processos de transformação
sociais
Joseph Beuys. Bomba de mel no local de trabalho, 1974-76. Instalação utiliza tubos, motor e 150 quilos de mel.
Beuys,
que figura entre os artistas mais importantes que surgiram no século 20, deixou
um legado que tem servido como referência até hoje para os artistas. Sua obra
continua encantando o público e questionando as estruturas sociais vigentes. Mais
do que nunca, seu engajamento político, social e ambiental é fonte de
inspiração, servindo como ferramenta de luta para tempos tão conflituosos quanto
esses que estamos atravessando.
Biografia
1921
Joseph
Beuys nasce em Krefeld, em 12 de maio.
1942/1943
Serve
como piloto de bombardeio durante a 2ª Guerra. Seu avião cai e Beuys carrega
seqüelas por toda a vida.
1947/1948
Estudos
com Ewald Mataré na Academia Federal de Artes de Dusseldorf.
1952
Através
de seu interesse pelo ensaio Sobre as Abelhas do fundador da antroposofia de
Rudolf Steiner, desenvolve uma “teoria específica da escultura”.
1953
1ª
exposição individual de Beuys, reunindo desenhos, xilogravuras e esculturas.
1959
Casa-se
com a professora de artes Eva Wumbach.
1961
É
designado professor para a cadeira de escultura monumental na Academia Federal
de Artes de Dusseldorf, vivendo nesta cidade pelos próximos 25 anos.
1962
Início
das atividades com o grupo Fluxus.
1964
Expõe
na 4ª Documenta de Kassel.
1965
Realiza
a ação Como Explicar Quadros a Um Coelho Morto, na galeria Schmela, de
Dusseldorf.
1967
Organiza
o encontro inaugural do “Partido Estudantil Alemão como Metapartido” na
Academia de Artes de Dusseldorf, com a presença aproximada de 200 estudantes.
1968
Participa
da Documenta 4, em Kassel.
1970
O
Museu do Estado de Hesse de Darmstadt incluí em uma de suas alas, a Seção
Beuys, um complexo didático com suas obras.
1971
Ocupa
a reitoria da Academia de Artes de Dusseldorf, na expectiva de conseguir a
inclusão da matrícula de vários alunos cuja inscrição fora recusada.
1972
Junto
a 54 estudantes matriculados e não matriculados, ocupa novamente a reitoria da
Academia para insistir no direito de oportunidades iguais na educação. Tem
cancelada seu contrato com a escola.
1973
Funda
a “Sociedade para o progresso de uma Universidade Internacional Livre para
Criatividade e Pesquisas Interdisciplinares”.
1974
Eu
gosto da América e a América gosta de mim, ação ocorrida na galeria René Block
em Nova York, em que permanece quatro dias com um coiote selvagem dentro de uma
sala de exposição na galeria.
1975
A
Corte Federal do Trabalho derruba a decisão da Corte Regional que havia
sustentado sua demissão.
1977
Instala
a Bomba de Mel na 6ª Documenta de Kassel.
1978
É
eleito membro da Academia de Artes de Berlim.
1979
Representa
a Alemanha Ocidental na 15ª Bienal de São Paulo.
O
Museu Guggenheim de Nova York realiza uma grande mostra retrospectiva de seu
trabalho.
1980
Participa
da 39ª Bienal de Veneza.
Andy
Wharol expõe os retratos que fez de Beuys.
1981
Inicia
o trabalho na obra Terremoto in Palazzo para uma exposição que pretende
angariar fundos para as vítimas de um terremoto em Nápoles, na Itália.
1982
Inicia
o projeto 7000 Carvalhos para a 7ª Documenta de Kassel
1983
Começa
a trabalhar na fundição de Bronze e alumínio. Este trabalho inclui a instalação
Raio com Veado em seu Clarão, em edição limitada a 5 fundições.
1984
Expõe
a instalação Terremoto in Palazzo na Villa Campolieto, em Herculano, Itália.
1986
Morre
em Dusseldorf em 23 de janeiro.
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