Por uma arte política:
os mundos visíveis de Rubens Pileggi
Manoel Silvestre
Friques
Dentre
o conjunto de procedimentos poéticos utilizado por Rubens Pileggi,
aqueles que talvez sejam mais pungentes dizem respeito ao modo como
o artista lida com a visibilidade. Suas obras propõem, com uma certa
freqüência, deslocamentos do visível, na medida em que trazem à
baila elementos ignorados pela paisagem urbana – mas que pertencem,
irrevogavelmente, a esta – ao mesmo tempo em que se dissolvem em meio
ao caos das grandes cidades. Questionando, por exemplo, a “lógica
do monumento” – no interior da qual a escultura representa, em caráter
grandioso, permanente e comemorativo, um feito histórico – Pileggi
trata de criar estátuas efêmeras em miniatura, instalando-os em lugares
de grande circulação. Em poucos horas, tais objetos somem sem deixar
rastros, em contraponto direto ao boom de memória vivenciado
nos dias atuais, seja por meio do desenvolvimento tecnológico, seja
por meio de um revival da idéia de monumento como memorial.
Aqui, não resta dúvidas quanto à proposta desmaterializante da obra:
o trabalho de Pileggi resiste à institucionalização artística ao
se diluir nas ruas das metrópoles, afirmando-se como uma antiescultura,
antiobjeto.
Se,
em Monumento Mínimo Precário (1998), o visível – a obra
de arte, a escultura mini-monumental – é devolvida à sua condição
de invisibilidade, em Notícias Fabricadas (2011), observa-se
movimento inverso. Atuando criticamente a partir de reportagens jornalísticas
que lidam com o “problema” dos moradores de rua, Pileggi exibe não
apenas este grupo de indivíduos, mas também os recursos utilizados
pela mídia para torná-los, por meio da visibilidade da notícia, mais
invisíveis. A matéria-mote para a obra expunha as medidas utilizadas
pela prefeitura do Rio de Janeiro para impedir a ação dos mendigos,
colocando pedras embaixo dos viadutos, impossibilitando-os de dormir
nestes locais. Relatava também a preocupação dos moradores “legítimos”
dos bairros, por meio da contratação de detetives responsáveis por
desvendar a origem e o perfil dos “invasores”. Ora, como não saber
a origem dos moradores de rua?
A
leitura do artista para a notícia produziu então o trabalho que agora
lemos. Às matérias iniciais, são acrescentadas duas páginas de jornal
contendo reportagens produzidas pelo próprio Pileggi, três travesseiros
sonoros e um relógio Romelex. Por meio das notícias que produz,
o artista cria uma fenda naquilo que Barthes denomina de logosfera
– uma espécie de camada de forração formada por tudo que lemos
e/ou ouvimos. Neste caso, ela se refere ao discurso oficial, por meio
do qual a versão jornalística se converte em retrato legítimo da
realidade. A criação de mais reportagens sobre o tema, acrescentando-lhe
informações, não é realizada de forma incólume, pelo contrário.
As notícias de Rubens levam ao extremo as posições jornalísticas
– aparentemente imparciais – a ponto de revelar-lhes seu absurdo
latente. O acréscimo de matérias impõe-se como um artifício por
meio do qual a reportagem do artista revela o caráter fictício –
e, por que não dizer?, mentiroso – de algo que se pretende verdadeiro.
A adição, portanto, abala o discurso jornalístico, interrompendo
o continuum de palavras que trata de esconder, ou ao menos velar,
suas verdadeiras intenções e posicionamentos. A perspectiva crítica
deste trabalho não surge por meio da denúncia ou da supressão, mas
da intensificação – através do acréscimo – de um discurso. É
neste sentido que o trabalho de Pileggi pode ser relacionado à poética
de Bertold Brecht.
Pois,
assim como a do encenador alemão, a obra aqui comentada trata de devolver
a verdade histórica ao escrito. Neste caso, ela está estampada
no título: notícias fabricadas. Enquanto verdade produzida,
o sentido deste discurso jornalístico é único: ele atua de modo monopolizante,
parcial e redutor. Isto não deve ser desconsiderado, nem neste, nem
em outros casos onde a mídia, com a sua capacidade (e o seu poder)
de controlar e manipular a informação, inventa verdades mentirosas
– neste sentido, o tratamento dado aos mendigos resulta de uma postura
padrão de um tipo de jornalista desvinculado já há algum tempo de
qualquer pensamento ético, postura essa que pausteriza os insurgentes
e os relega à invisibilidade (mais recentemente, pode-se mencionar
o caso de Pinheirinho, em São Paulo, noticiado de modo torpe pelos
veículos de comunicação).
A
verdade histórica é inserida então no espaço atemporal e asséptico
da galeria de arte. Ora, nesta operação, onde o histórico se choca
com o atemporal, põe-se em jogo não apenas os binômios verdade/mentira
e história/natureza, mas também outro: fora/dentro. Ao dar destaque,
por meio de sua obra, a assuntos rotineiramente relegados ao esquecimento
– não apenas pelos jornais, mas por todo e qualquer transeunte
de uma grande cidade – Pileggi impregna o interior da galeria
de seu exterior, acrescentando (uma vez mais) a um espaço subtraído
(afinal, este lugar isola a obra de tudo aquilo que pode interferir
a sua apreensão) todo o seu entorno. O cubo branco é, com isso, contaminado
– os mendigos não estão apenas soltos nas ruas, mas presentes também
até nos espaços ideais das galerias de arte. Os três travesseiros
atuam, com isso, de modo diametralmente inverso a propostas relacionais,
como os Objetos transitórios para uso humano (2008), de Marina
Abramovic – cuja genealogia, indubitavelmente, deve remontar à produção
de Ligia Clark – na qual o espectador é convidado a vivenciar “momentos
de paz” desencadeados por relações ritualísticas com materiais
como cristais, cobre e ferro. No caso de Pileggi, elimina-se a possibilidade
de uma vivência desta natureza, pois encostar a cabeça no travesseiro
traz consigo a densidade sonora do exterior. O espectador, então, é
alçado à condição de mendigo, vivenciando, não uma experiência
íntima e atemporal, mas uma situação histórica e fabricada pela
notícia do artista.
O
choque temporal e a redistribuição espacial observados na obra de
Rubens Pileggi conduzem à crença de que suas produções artísticas
são políticas. Tal afirmação pressupõe uma noção de arte política
que, antes de representar conflitos sociais ou denunciá-los, configura-se
como um sensorium no qual a experiência proposta trata de produzir
um dissenso, uma fissura na logosfera instituída. Por meio de abalos,
acréscimos e deslocamentos, Pileggi questiona justamente os regimes
instituídos de visibilidade e de legibilidade, travando um diálogo
com Jacques Rancière, quando este diz que a arte é política quando
“os espaços e os tempos que ela recorta e as formas de ocupação
desses tempos e espaços que ela determina interferem com o recorte
dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e
do público, das competências e das incompetências, que define (ou
definem?) uma comunidade”. Sua obra é política na medida em que
redistribui relações e embaralha polaridades – ela não poderia
ser outra, portanto, a não ser um Romelex.